sábado, 1 de maio de 2010

A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE NA LADEIRA DA BARRA

Imagino que qualquer Yacht Club do mundo - se os ricos representam realmente a nata da sociedade - estão na parte que azedou e virou coalhada. Seria de todo ilícito falar em uma podridão da qual nada se aproveita, como é o escarro de um babuíno ou os estertores da digestão de um canguru. Pois no Yacht Clube da Bahia - fundado em 23 de maio de 1935 - a situação é piorada, já que os movéis de carvalho exalam a nostalgia do dinheiro. Funciona como o extrato do pretérito, quando gerações anteriores foram capazes de construir o fausto para sustentar a decadência perfumada de hoje.

Este O Paredão testemunhou um evento noturno no petit comitée da Ladeira da Barra e constatou que definitivamente o nosso colunista do segundo caderno acertou ao prever que a C&A fez bem em contratar Ivete Sangalo como garota-propaganda (não preciso dar maiores detalhes sobre essa constatação, mas podem ver se nas filas da referida loja de departamento neste exato momento não estão serviçais que atendem ao gênero "senhoras-em-vias-de-falência", cuidando para a renovação do guarda-roupa).

A primeira observação do nosso estagiário etílico foi a solidariedade entre os garçons do buffet e os tequileiros. Aqueles pedem a estes para retirar o maior número de itens da bandeja e assim aliviar mãos dos olhos de abutre dos antes-ricos. O peso de equilibrar entrar o sorriso de gentileza mal paga e o desejo que essa raça agonize sem vestígios de pompa.

É sintomático quando uma banda-baile escolhe para o repertório a música Dou a Vida por Um Beijo, de Zezé di Camargo e Luciano ("difícil demais te amar assim..."), antes executada exclusivamente em bares de alcólatras corneados do subúrbio ferroviário. Sinal dos tempos. Se tiver versão acústica, com metais em um arranjo novo, já há o pretexto suficiente para se tornar cult (o nome do brega de quem se julga rico).

A vida de aparências (ou histórias de fazer dormir gente grande), poderia ser um título de um livro psicografado de Clarice Lispector, mas é a sinopse para qualquer convescote da grã-finagem, encontros que se tornaram a antítese do capitalismo. O dinheiro não gira - porque não existe -, tudo é permuta, os serviços são trocados, a comida é distribuída em troca de uso de propaganda, ninguém precisa pagar a ninguém, todas as ararinhas azuis permanecem em extinção e as últimas continuam engaioladas. Doze bolinhos de frango fritos valem uma notinha na coluna social de um informativo para consultórios médicos.

Enquanto isso, pingentes de strass adornam pescoços flácidos que 40 anos antes ostentavam ouro 18 quilates, ex-damas fazem biquinho para beber espumante e garotas de farmácia não seguram o dedo mindinho ao elevar a taça.

O fotógrafo contratado ganha por produtividade, por isso precisa sugerir que o máximo de pessoas sorriam, mesmo que isso implique em fisionomais mais artificiais do que os muitos seios do salão. Alguns whiskies de 8 anos são sorvidos com a cerimônia de maltes escoceses, enquanto o espumante travoso de umbu-cajá é nacional mesmo. Mudam-se os tempos, mudam-se as exigências de paladares.

Os preparadores de coquetel, que recentemente passaram na segunda fase de alguma matrícula em formato vestibular, continuam tratados pelos garçons como se fossem acompanhados dos respectivos avatares, só isso para explicar porque são servidos em dobro no fundo do salão. De repente, um deles saca o celular piscante e balança para o colega: "é mulher, viado". Definitivamente, quando fenômenos desse nível reptiliano de evolução encefálica viram assunto de cobertura jornalística é porque a banda continua insistindo no repertório "as melhores já tocadas por quem tem a mãe no mangue".

Rodas de amigas se revezam para tirar fotos em câmeras de 8 a 10 megapixels: individuais (sentadas na banqueta alta), ou coletivas (prendendo a respiração e tentando reduzir medidas abdominais bem disfarçadas em vestidos).

(Nesse momento, todos saíram da frente e minha imagem surge em um espelho do tamanho do pé-direito, de tal sorte que é até difícil o auto-reconhecimento; pensei que estava na festa mas a fotografia é de um homem com o queixo apoiado em uma das mãos, camisa branca, olhando para o nada, expressão semelhante a quem é internado por ingestão de salmonela).